Pela primeira vez na história sanitária do Brasil, foi registrado, nesta sexta-feira (16), um caso de influenza aviária de alta patogenicidade (IAAP) em uma granja comercial localizada no município de Montenegro, no Rio Grande do Sul. A confirmação feita pelo Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa) representa uma virada crítica na luta contra doenças emergentes de origem animal no país, reacendendo o debate sobre a capacidade brasileira de resposta diante de riscos sanitários de alta complexidade.
Desde maio de 2023, quando o Brasil notificou à Organização Mundial de Saúde Animal (OMSA) as primeiras ocorrências do vírus em aves silvestres, especialistas já alertavam para o risco iminente da entrada da doença no circuito produtivo. A partir desse novo foco em uma unidade produtora, medidas previstas no plano de contingência já foram acionadas, como o isolamento da área e o sacrifício sanitário das aves, com o objetivo de erradicar o foco e evitar a propagação.
O presidente do Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais Federais Agropecuários (Anffa Sindical), Janus Pablo Macedo, ressalta que o episódio evidencia uma carência estrutural na defesa agropecuária nacional. “O enfraquecimento da inspeção pública coloca em risco a reputação construída com tanto esforço ao longo de décadas e compromete a saúde da população. O Brasil precisa de uma defesa agropecuária forte, pública e estruturada para enfrentar os desafios sanitários que se impõem”, afirma.
Segundo o sindicato, o número de auditores fiscais federais agropecuários em atividade está muito abaixo do necessário para atender à crescente demanda, especialmente num cenário de aumento das exportações e intensificação do fluxo agropecuário. Por isso, a entidade defende a convocação imediata dos aprovados no último concurso público, incluindo os nomes do cadastro reserva.
A situação é crítica não apenas pela escassez de recursos humanos, mas também pela infraestrutura obsoleta. O Anffa Sindical cobra a renovação da frota de veículos e a aquisição de novos equipamentos essenciais para atuação em campo. “É urgente ampliar o efetivo para garantir uma atuação adequada. Sabemos que o prejuízo financeiro às granjas será imenso, mas é preciso agir com rigor e eficiência”, reforça Macedo.
Em 2024, o Brasil exportou 5,294 milhões de toneladas de carne de frango, segundo dados da Associação Brasileira de Proteína Animal (ABPA), um aumento de 3% em relação ao ano anterior. Esse desempenho confirma o protagonismo da avicultura brasileira no mercado global. No entanto, a entrada do vírus H5N1 em granjas comerciais pode comprometer diretamente a imagem sanitária do país e gerar impactos econômicos severos, inclusive sobre a segurança alimentar e a confiança internacional nos produtos nacionais.
A médica veterinária Dra. Greyce Lousana, presidente executiva da Sociedade Brasileira de Profissionais de Pesquisa Clínica e uma das maiores referências em pesquisa clínica do país, alerta para o caráter zoonótico do vírus. “Embora ainda seja rara entre humanos, o aumento dos casos alerta pesquisadores, médicos e veterinários. E não à toa: surtos como ebola e covid foram de origem animal”, lembra.
Dados da Organização Mundial da Saúde (OMS) indicam que quase 75% das doenças infecciosas emergentes que afetam humanos têm origem animal. Além disso, cerca de 80% dos agentes com potencial uso como armas biológicas são patógenos zoonóticos, segundo a Dra. Greyce. “A próxima pandemia não será evitada apenas com vacinas, mas com vigilância constante dos habitats onde os vírus circulam. Se não tivermos uma interação entre médicos veterinários e demais profissionais de saúde, o futuro da humanidade será cada vez mais caótico”, pontua.
Ela destaca que a Medicina Veterinária desempenha um papel estratégico na contenção de pandemias futuras, sendo um elo vital entre a saúde animal e a saúde humana. A integração entre esses campos, segundo especialistas, é a chave para a construção de políticas sanitárias mais robustas e eficazes.
Apesar da gravidade da situação, o Mapa informou que as ações de contenção foram imediatamente iniciadas. O objetivo é proteger a capacidade produtiva do setor, manter o abastecimento interno e preservar a segurança alimentar nacional. No entanto, o momento crítico coincide com a discussão da Portaria nº 1.275/2025, em consulta pública, que prevê a possibilidade de frigoríficos contratarem diretamente os médicos veterinários responsáveis pela inspeção de seus produtos — medida que, segundo o Anffa Sindical, fere princípios de independência e abre margem para fraudes e conflitos de interesse.
A proposta foi denunciada nesta semana ao Ministério Público Federal (MPF) e levanta questionamentos sobre a credibilidade do sistema brasileiro de controle sanitário. “O controle sanitário deve ser conduzido por servidores de carreira, com estabilidade e prerrogativas para atuar em defesa da sociedade, da saúde pública e dos interesses do País — e não apenas das empresas”, defende Macedo.
O caso em Montenegro expõe, com contundência, que o Brasil precisa revisar e fortalecer seus mecanismos de prevenção e resposta a emergências sanitárias. A gripe aviária, embora sob controle, é um alerta real e presente: o combate às zoonoses exige vigilância permanente, investimento público e integração de saberes. Não basta conter surtos. É preciso antecipá-los.