Um dos maiores legados da agricultura brasileira ao mundo nasceu no Paraná. E não se trata apenas de uma técnica, mas de uma transformação conceitual profunda no modo de cultivar. O Sistema de Plantio Direto (SPD) não apenas revolucionou as práticas no campo, mas consolidou o Brasil como protagonista em soluções agrícolas sustentáveis adaptadas às condições tropicais. Fruto de uma construção coletiva entre produtores, pesquisadores e instituições, o SPD brasileiro é hoje um exemplo mundial de manejo sustentável adaptado às condições tropicais. A afirmação vem de um artigo científico publicado na renomada revista internacional Advances in Agronomy, intitulado “No-tillage system: a genuine Brazilian technology that meets current global demands”, que reconhece o SPD como uma contribuição genuinamente brasileira à agricultura mundial.
O debate sobre a viabilidade do preparo convencional do solo em regiões tropicais começou ainda na década de 1960. Pesquisadores do então Ipeame (Instituto de Pesquisa e Experimentação Agropecuária Meridional), vinculado ao Ministério da Agricultura, questionavam se as técnicas herdadas da Europa, como aração e gradagem, eram adequadas à realidade climática e edáfica brasileira. Foi nesse contexto que surgiram os primeiros experimentos com semeadura direta, realizados em Londrina, norte do Paraná.
Ao mesmo tempo, no campo, agricultores também buscavam soluções frente aos crescentes problemas de erosão e perda de fertilidade. Em 1971, o produtor Herbert Bartz, de Rolândia, buscou no Ipeame informações sobre a nova técnica. Trazia também na bagagem a experiência observada nos Estados Unidos, onde o método de semeadura sem revolver o solo já apresentava bons resultados. No ano seguinte, Bartz protagonizou a primeira semeadura direta de soja comercial de que se tem registro na América Latina, abrindo caminho para a adoção do sistema por outros agricultores visionários.
Ainda na década de 1970, nomes como Franke Dijkstra e Manoel Henrique Pereira, o “Nonô”, se somaram a Bartz na adoção e promoção do novo modelo. Segundo o pesquisador Tiago Santos Telles, do IDR-Paraná (Instituto de Desenvolvimento Rural do Paraná – Iapar-Emater), “esses agricultores não apenas experimentaram uma técnica, mas ajudaram a construir uma nova forma de pensar a agricultura”. Para Telles, são verdadeiros “embaixadores da inovação brasileira”.
O ano de 1972 também marcou a criação do Iapar (hoje IDR-Paraná), que teve papel crucial na formulação teórica do SPD. A instituição foi responsável por consolidar os três pilares fundamentais do sistema: não revolver o solo, manter cobertura permanente com palha ou plantas vivas, e realizar a rotação de culturas. “Ao longo do tempo, percebeu-se que não bastava suspender o revolvimento do solo. Era necessário diversificar culturas, manter a cobertura vegetal constante e promover um sistema mais equilibrado e resiliente”, explica Telles.
A partir de 1976, o termo “Sistema Plantio Direto” passou a ser utilizado pelos pesquisadores do Iapar, refletindo a complexidade das práticas envolvidas. “Foi quando a abordagem deixou de ser uma técnica isolada e passou a ser compreendida como uma estratégia agrícola integrada, com base ecológica e sistêmica, apropriada às condições tropicais”, observa Rafael Fuentes Llanillo, coautor do artigo e pesquisador dedicado ao tema desde 1979. Aposentado, Fuentes atua hoje na Febrapdp (Federação Brasileira do Sistema Plantio Direto), mantendo seu compromisso com a disseminação do SPD.
A expansão da prática foi rápida. Em 1972, apenas 200 hectares eram cultivados sob plantio direto. Três anos depois, já eram cerca de 200 produtores no Paraná. Nos anos 1980, a tecnologia ganhou os estados do Sul e Centro-Oeste, e nos anos 1990 consolidou-se nacionalmente com o avanço da mecanização e dos insumos apropriados. Segundo o Censo Agropecuário de 2017 do IBGE, mais de 33 milhões de hectares já eram manejados sob SPD no Brasil – 62% da área de grãos do país. Estimativas mais recentes apontam para mais de 41 milhões de hectares.
A adoção da técnica no Brasil extrapolou fronteiras. Em 2020, o plantio direto era usado em mais de 205 milhões de hectares no mundo, com forte presença na Argentina, Estados Unidos, Canadá, Austrália e China. Ainda assim, o modelo brasileiro é visto como o mais sofisticado, segundo a FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura), que reconhece os três pilares do SPD nacional como base para a “agricultura de conservação”.
“O sistema de plantio direto é uma vitória da audácia, persistência e solidariedade dos agricultores e da ciência brasileira. Levamos ao mundo uma forma de produzir que alia alta produtividade à conservação ambiental, uma ferramenta das mais eficazes para enfrentar os desafios das mudanças climáticas e da segurança alimentar”, afirma Fuentes Llanillo.
O artigo científico, assinado por Tiago Santos Telles, Rafael Fuentes Llanillo, Ruy Casão Junior (IDR-Paraná), Marie Luise Carolina Bartz (UFSC e Universidade de Coimbra) e Ricardo Ralisch (UEL), é mais do que uma publicação: é um reconhecimento à trajetória do SPD no Brasil como tecnologia estratégica, fruto da ciência nacional e do saber agropecuário aplicado à realidade tropical.